terça-feira, 12 de agosto de 2025

O teto continua caindo


 Muito se fala sobre políticas de diversidade e inclusão. Antes de mais nada, preciso fazer uma discriminação entre esses conceitos, ainda que o último termo possa soar estranho num primeiro momento.

Diversidade é algo incontrolável. Ela está por todas as partes. Basta caminhar pela rua e você estará cercado dela.

Negar a diversidade seria como entrar nos grotões da floresta amazônica e dizer que, para você, é tudo igual, enquanto está cercado do bioma mais diversamente complexo do planeta. É possível? Claro. Inteligente? Nem um pouco.

Isso não significa que muitas pessoas não rejeitem a diversidade (qualquer diversidade) e procurem restringir sua existência a espaços segregados. Quando isso não é possível, segregam a si próprias para ficar longe dela.

A essa atitude dá-se o nome de exclusão. Ela pode variar das formas mais sutis às mais violentas, como as tentativas de eliminação de determinados grupos excluídos.

Não é à toa que, em defesa própria, muitos grupos de excluídos acabem se auto segregando quando saem em defesa da sua inclusão como grupo. Defender a inclusão de pessoas com as características X, Y ou Z é, na sua raiz, uma forma de segregação. Irônico? Muito. Compreensível? Talvez.

Por isso inclusão ainda é um sonho distante em muitos contextos. Inclusão de verdade é onde todos participam de tudo com todos os demais. Não é apenas ter o direito de participar (o que não deixa de ser importante), mas onde cada ser humano seja bem-vindo sem condições prévias.

É uma questão de mudança sociocultural que, sabemos, não se constrói da noite para o dia. Também nunca se construirá se não começarmos.

E aqui chegamos ao x da questão: estamos realmente começando?

Enquanto nossas políticas de diversidade e inclusão forem apenas decorrentes de ações afirmativas para grupos específicos (portanto, uma obrigação legal), não passarão de cumprimento de tabela.

Enquanto não passarem de "greenwashing" corporativo para aparecer na mídia, continuarão sendo maquiagem.

Enquanto forem direcionadas para esse ou aquele público, permanecerão sendo uma enganação bem-intencionada.

Vou ser mais direto: a maioria das políticas de diversidade e inclusão que vemos por aí não passam de teatro. Um teatro bem montado, com roteiro bonito e atores convincentes, mas ainda assim teatro.

O problema não está apenas nas empresas que fazem esse teatro. O problema está numa sociedade cada vez menos preocupada com o coletivo, que todo dia mata um pouco mais a alteridade.

Como esperar inclusão real de uma sociedade que não consegue nem incluir a si mesma numa reflexão honesta sobre suas próprias contradições?

A inclusão real exige coragem para sair da zona de conforto. Exige reconhecer que talvez sejamos nós mesmos os primeiros a precisar ser incluídos numa nova forma de pensar e agir.

Enquanto não tivermos essa coragem, continuaremos apenas mudando a decoração da sala enquanto o teto desaba.

 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Simulacros inclusivos



Existem momentos em que você imagina que já tenha visto, ouvido ou lido todas as besteiras que o ser humano é capaz de inventar. Só que não.

Caminhando pelas ruas de certo bairro chique aqui de São Paulo, me deparei em uma das muitas construções que estão em andamento pela cidade. Como todas elas, era protegida por um tapume.

Mas não era um tapume qualquer. Segundo a mensagem escrita em letras grandes, aquele era um tapume inclusivo!!!

Eu fiquei em dúvida se ria ou sentava no chão e chorava, mas não quis sujar minha roupa com os restos de concreto que uma betoneira tinha deixado escorrer pela calçada.

O que afinal é um tapume inclusivo, em um oceano de exclusões?

A primeira é a de que se trata de um prédio bem metido a besta numa das regiões de metro quadrado mais caro da cidade. Portanto, uma explícita, exclusão sócio-econômica.

Segundo, como é comum nesse tipo de mercado, os produtos que serão oferecidos são produzidos majoritariamente por mão de obra preta ou parda, para depois serem habitados pelos mauricinhos e patricinhas do pedaço.

A terceira, é que a obra destruiu a calçada, além dos restos de concreto, com todo tipo de resto de material, ou seja, a calçada está intransitável (cadê a acessibilidade?) não só para pessoas com dificuldade de locomoção, como para qualquer outro humano.

Ah...no tapume, pintado em cores variadas, predominam manchas verdes simulando (ou serão simulacros) um propósito ESG. Eles se acham inclusivos por terem sido pintados por pessoas com deficiência de uma ONG.

Se isso é inclusão eu sou o mico-leão dourado, também risco de extinção.

A imagem é meramente ilustrativa de tapumes que invadem calçadas, e não d tapume mencionado acima

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Ah... essas generalizações

 



A palavra estereótipo tem origem nas palavras gregas stereos e typos, que significam "impressão sólida". O termo foi criado pelo gráfico francês Firmin Didot em 1794 para se referir a um processo de impressão gráfica que permitia a produção em massa de jornais, revistas e livros. 

O jornalista americano Walter Lippmann foi o primeiro a usar o termo com o sentido psicológico, em 1922. No seu livro Opinião  Pública, Lippmann usou o termo para descrever a forma como as pessoas simplificam e categorizam o mundo e as outras pessoas para facilitar a compreensão. 

 Atualmente, o termo estereótipo é usado para descrever uma ideia ou impressão fixa e generalizada de um grupo de pessoas. Essas representações sociais costumam ser a base de preconceitos e outras crenças sociais.

 Impressão fixa, generalizante é uma prática bastante generalizada (oops!), desde as diferenças mais básicas como as que opõem homens x mulheres, passando pelas de raça e cor (que o diga o comportamento das polícias em relação aos negros)  e, claro, de todas as demais sejam elas representativas ou não.

 Quando trata-se de pessoas com deficiência, a tendência é a de generalizações piedosas e/ou compensatória: “eles são tão amorosos”, “escutam que é uma beleza”, “em compensação são tão inteligentes”, e por aí vai.

 Claro, toda e qualquer generalização, acaba criando barreiras para as pessoas generalizadas e excluindo-as da possibilidade de realizar algo, ou obrigando-as a realizar algo para elas não tenham habilidade ou inclinação.

 Toda vez que você se sentir tentado a começar uma frase com “eles (ou elas) são...” pare e repense o que vai dizer

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Por menos heróis



Você vibrou quando aquele atleta com deficiência múltipla foi campeão de alguma modalidade paraolímpica. A imprensa também, afinal, aquele ser que no cotidiano era relegado a ser um cidadão de terceira classe, de repente virou um herói nacional.

Talvez sua heroína seja aquela moça preta e pobre que saiu da periferia da periferia e agora está se graduando em Harvard ou no MIT.

Também pode ser o jovem autista que ganhou um prêmio num concurso de televisão.

Por incrível que ainda pareça, pode até ser aquela mulher que tornou-se CEO de uma multinacional importante.

Em todos esses (e outros) casos, o que circula no seu consciente ou inconsciente, é de que essas pessoas nunca poderiam ter chegado aonde estão, e por isso devem ser louvadas e adoradas.

Pior do que esses casos, chamados de notáveis, também se repetem nas atividades mais elementares, e tratamos como heróis até aquelas pessoas com deficiência intelectual que aprenderam a ler e escrever (se foram além disso, começam até a aparecer nos jornais e nos filminhos do Instagram.

Vamos combinar uma coisa? Se esse é o seu olhar sobre a diversidade, você está sendo profundamente preconceituoso. O seu pré conceito é justamente é de que pessoas assim não poderiam fazer o que fazem, ou chegar onde chegaram.

Ah...sei, mas você é uma pessoa do bem e gosta de afagar o ego daqueles que você mesmo marginaliza, assim você pode juntar muitos likes reproduzindo esses posts piegas e, quem sabe, até virar um especialista em diversidade.

Poupe-me!

 Como diria  o filósofo Herbert Spencer: “O culto dos heróis é mais forte onde a liberdade humana é menos respeitada.”

Descrição da imagem: figura do herói Hércules, em desenho animado da Disney. Um homem forte e confiante.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Inclusões excludentes


Aparentemente o termo inclusão virou moda e, como sói acontecer com todas esses modismos terminológicos, acaba tornando-se algo que não representa as suas reais intenções.

Das definições da palavra, a que sempre mais me agradou foi a de “pertencer entre os outros”, é a que melhor representa a minha crença de que só existe inclusão quando ela é de todos com todos.

No entanto, o que se vê todos os dias e com uma frequência absurda é a prática de incluir as pessoas do tipo X, Y ou Z. E aqui cabe uma ressalva, a realidade mostra que essas pessoas X, Y e Z realmente fazem parte de grupo que, historicamente, foram e ainda são excluídos em diversos contextos sociais e econômicos.

Por outro lado, se eu milito para só incluir X, e não tenho a menor preocupação com Y e Z,  eu estou sendo tão, ou mais, segregacionista que as classes privilegiadas.

Pior, muito pior, é quando eu crio situações ditas inclusivas que permitem só a participação das pessoas X. Quando eu exalto fatos ou notícias a respeito daquele lugar que só contrata ou admite pessoas Y, quando eu me emociono com relatos de um grupo de pessoas Z que teve sucesso (seja lá o que se entende por isso).

Essa postura é um problema ideológico, por que o que se esconde atrás dessa atitude é a não-aceitação da diversidade como valor humano e a perpetuação das diferenças entre pessoas, ressaltando que essas diferenças são insuperáveis e que cada grupo só pode jogar dentro do seu próprio quadrado.

Quando falamos de uma sociedade inclusiva, pensamos naquela que valoriza a diversidade humana e fortalece a aceitação das diferenças individuais. É dentro dela que aprendemos a conviver, contribuir e construir juntos um mundo de oportunidades reais (não obrigatoriamente iguais) para todos.

Se você se pretende autodenominar inclusivo, comece a se preocupar com todas as pessoas e não apenas com seu grupo de interesse.

O que passa disso, é enganação.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Tempos doentios


Vivemos em tempos em que tudo virou doença ou, para usar um termo menos agressivo, tudo virou patologia. 

Seja uma apatia do tornozelo ou uma dor no lóbulo esquerdo, para qualquer coisa existe uma pílula, um comprimido, uma formula manipulável (ou será manipuladora? não sei)

O ditado que diz que o que não tem remédio, remediado está, perdeu completamente o seu sentido em um mundo em que sentimentos, comportamentos e o pensamento heterodoxo podem ser medicalizados.

Eu prefiro o termo medicalizado a medicado, que o corretor ortográfico aqui diz que não existe, mas que é definido como sendo o processo que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos.

Problemas de diferentes ordens são apresentados como “doenças”, “transtornos”, “distúrbios” que escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais, afetivas que afligem a vida das pessoas.

Para cada um deles existe uma solução imediatista (um dos sintomas da doença como pensamento como bem define o físico David Böhm) ou uma solução mágica. Cá entre nós, se mágica resolve, eu prefiro os truques do Marcos Mandrake que, pelo menos, são bem humorados.

Na sociedade da busca do conforto a qualquer custo, as pessoas, cada vez menos, são capazes de lidar com o fato de que a vida também tem seus aspectos negativos.

O que muitos chamam de sociedade tóxica está, na verdade, transformando-se me sociedade intoxicada. Uma epidemia nada silenciosa que se alastra, sem nenhuma vacina que possa contê-la.

Em 1978, isso já me espantava, e compus um poemeto chamado Farmacopeia amorosa.

Calmantes
Revigorantes
Vitaminas
Tiaminas.
Bulas , engulas.

Para o tédio
Há remédio
No coração
Uma injeção
Se tens pena
Cibalena.

Se me rogas
Tome drogas
Se és altivo
Um curativo
Na paixão
Põe-se algodão.

Vives mal?
Um melhoral
Antipatia
Homeopatia
Mal afamado
Agora é tarjado.

Depois de tantos anos, a situação só se agravou mas, em breve, a pílula azul estará disponível para todos.

 *Disclaimer: autor desse texto reconhece que o avanço da medicina e da farmacologia já poupou várias vidas, mas entende que esse recurso deveria ser exclusivo para as doenças de fato.

Descrição da imagem: uma mão estendida oferecendo uma pílula azul

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Por um mundo menos humano



Algumas manchetes dessa semana, extraídas de jornais tradicionais (e não de tabloides sensacionalistas):

 Ambientalistas denunciam recompensa a quem matar tubarões em Ubatuba

Jovem denuncia estupro dentro de camarote de rodeio em SP

Mulher descongela geladeira e encontra corpo de bebê escondido

 Explosão em Munique deixa feridos

 Atentado em escola de 2º grau em Michigan deixa 4 mortos e 8 feridos

Não sei exatamente em que universo você vive, nem qual é a sua relação com a realidade, mas eu vivo em um universo e em uma realidade em que as pessoas vivem pedindo atitudes mais humanas.

Querem relacionamentos mais humanos, gestões humanizadas, atendimento humano e, pasmem, alguns até esperam que os robôs possam ser mais humanos.

Como se o ser humano fosse um ideal de perfeição ou humanizar algo fosse o nirvana a ser alcançado por uma espécie que nesses últimos 10 mil anos demonstrou ser um retumbante desastre (ainda que, como diz o mestre Mariotti, possa ter tido surtos intermitentes de lucidez).

Humanidade que, desde as suas origens mitológicas, teológicas ou históricas se pautou pela violência, pelo homicídio, pelas guerras, pela destruição do seu entorno.

Animais que evoluíram, dizem alguns. Se isso é evolução, teria sido melhor se não tivéssemos ultrapassado a fase dos aminoácidos (tudo bem, eu concordo, vários outros seres vivos ultrapassaram essa fase sem terem se tornado o que somos, alguns são até bichos bem simpáticos).

Humanos que somos arrogantes, vaidosos, egoístas, manipuladores, agressivos, interesseiros...e o restante da lista eu deixo por conta da sua imaginação.

As chamadas virtudes morais, éticas, teologais ou filosóficas não passam daquilo que os falantes da língua inglesa chamam de wishful thinking, um pensamento desejável, mas ilusório, como se a humanidade fosse uma legião de anjinhos carinhosos.

Não conheço outros seres vivos que agridam ou matem seus semelhantes por prazer. Nem que destruam seu habitat.

Portanto, na próxima vez que for defender mudanças, refira-se a elas como um mundo menos desigual, uma liderança mais respeitosa, uma gestão menos exploradora. Mas não como algo mais “humano”.

De humanista já basta a estupidez.


Descrição de imagem: crianças fugindo da guerra em uma paisagem de seca

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O menino que até aprenderia a ler

 


Dezembro de 1998. Nascia o nosso primeiro filho, o Samuel. Logo de cara dois sustos: a síndrome de Down e uma cardiopatia que precisava ser corrigida por cirurgia. É óbvio que ficamos sem chão. Além de pais de primeira viagem, não sabíamos nada a respeito de nenhuma das duas situações. Fomos aprender.

Lembro de duas frases que me marcaram. Uma do geneticista do hospital que disse que eu não deveria entrar em pânico, pois “essas crianças” até aprendem a ler. A outra de um pai de um menino de 9 anos que disse que o Samuel seria aquilo que nós investíssemos nele, e fez questão de ressaltar que não era dinheiro, mas estimulação, atenção e nossa crença de que ele não tinha limites.

O tempo, os contatos e algumas visitas a escolas especiais nos aproximaram da educação inclusiva. Não era uma opção, era o único caminho viável. E mergulhamos sem medo naquilo que ainda era mais uma luta do que uma realidade.

E assim se passaram 22 anos, e o menino que “até iria aprender a ler” hoje se graduou em Pedagogia, para ensinar outras crianças também a ler e escrever.

Não foi superação, não foi heroísmo, não foi milagre.

Foi a convicção de que as pessoas só se desenvolvem no relacionamento com pessoas de todos os tipos.

Foi a cabeça-dura do pai que nunca deixou ele participar de atividades segregadas.

Foi a recusa em lhe dar privilégios e tratamento diferentes do que se daria a qualquer outro filho.

Ele teve algum privilégio? Certamente, e ele sabe disso. Privilégio de nascer em uma casa em que a educação era objetivo essencial. Privilégio de ter uma irmã que nunca deu moleza. Privilégio de contar com excelentes professores no caminho. Privilégio de concluir um curso superior que ainda é apenas um sonho para muitos brasileiros. E até o privilégio de ter enfrentado o preconceito da primeira faculdade onde entrou e aprender muito com isso.

Não vou me arriscar a listar todas as pessoas que contribuíram na construção desse caminho, seria um risco deixar muitos de fora (mas cada um deles sabem quem são), mas apenas mencionar duas pessoas cujos ensinamentos foram essenciais nesse processo: o Prof. Miguel Lopez Melero da Universidade de Málaga, e a Profa. Maria Teresa Mantoan da Unicamp, a quem eu chamo carinhosamente de meu guru e a minha gurua.

Agora começamos uma nova fase, a da busca de trabalho. As regras do jogo, porém, não vão mudar. Todos com todos. Sem segregação. Sem tratamento “especial”, e a expectativa de algum dia não precisar mais falar sobre inclusão.

Descrição da imagem: Samuel, um jovem magro e barbudo, vestido com a beca e o capelo de formando.


segunda-feira, 10 de maio de 2021

Só querer não é poder

 


Muitos dizem que a realidade é volátil, incerta, complexa e ambígua, e é verdade. Outros preferem dizer que é frágil, ansiosa, não linear e incompreensível, e também é verdade. Bradam que a modernidade é líquida (e é), que os sistemas são complexos (e são). Eu costumo dizer que a natureza humana é móvel, insaciável, confusa e obtusa (mundo MICO, aquele que ninguém quer segurar).

Em 1513 Maquiavel já percebera que a “virtú” é poderosa, mas está sempre condicionada à vontade da “fortuna”. Kahneman, no seu “Rápido e Devagar” deixa claro que o sucesso está mais frequentemente ligado à sorte (acaso) do que ao mérito.

Por que então algumas pessoas ainda insistem no mito do “querer é poder”?

Será que o fato de eu ainda não ter conseguido muitas coisas se deve simplesmente à hipótese de que eu não tenha querido o suficiente? Existe um querômetro capaz de medir a intensidade do querer? Qual é a maneira correta de querer algo? Se eu participei de uma corrida de 100 m rasos e cheguei em segundo lugar isso se deve ao fato que o vencedor queria mais que eu?

Indutores do mito

Alguns relacionam o conceito do “querer é poder” com a supervalorização do talento em oposição ao esforço. Admiramos mais os talentos precoces do que aqueles que chegam ao mesmo ponto depois de anos de estudo. O aluno que, num acaso da “fortuna” tira uma nota alta, em oposição aquele que sempre ia mal e começou a melhorar suas notas com o tempo.

Mas não podemos simplesmente virar a chave de um lado para o outro, com o risco de cairmos na da meritocracia, a ideia de que somos recompensados apenas pelo esforço. Não partimos todos do mesmo ponto.

Se, como eu, você nasceu numa família de classe média, foi educado em boas escolas e teve acesso aos bens culturais, você não pode comparar o quanto alcançou a quem não teve nada disso. Não foi por querer mais que a outra pessoa que você alcançou muitas das suas metas. Foi apenas circunstância. 

Também não vale apelar para o discurso da superação baseado em histórias comoventes, mas totalmente isoladas da realidade. O rapaz negro que vendia picolé e se tornou o primeiro brasileiro negro a ser aprovado no MBA do MIT é a exceção da exceção da exceção.

Basta lembrar que São Gonçalo fica a menos de 30 km de Jacarezinho.

Em suma

Não pretendo aqui desmerecer os méritos ou o esforço de ninguém - a César o que é de César – apenas lembrar que não são frases de efeito que vão resolver nossos problemas. Algumas coisas não vamos alcançar nunca.

Com dedicação muitos conseguem algo, outros conseguem mais que os outros com menos dedicação.

Acusar as pessoas que não foram bem sucedidas de falta de vontade é um modelo cruel que não respeita as diferenças. Louvar como bem sucedidas aquelas a quem a vida deu mais oportunidades para isso é ainda mais cruel para as que não tiveram a mesma “fortuna”.

Descrição da imagem: Hércules apontando uma flecha tentando combater a Aporia, o espírito da dificuldade.

terça-feira, 16 de março de 2021

Xiita convidada: “Aceitamos candidatura de pessoas com deficiência.”


Texto de Letícia Ribeiro*

“Aceitamos candidatura de pessoas com deficiência.”

Querido recrutador, parabéns por fazer o mínimo. 

Era uma segunda-feira como todas as outras e eu estava no linkedin ajudando uma amiga a encontrar uma boa vaga de emprego. Entra em vaga, sai de vaga, entra em outra, sai de mais uma, até que eu me deparo com uma vaga legal, em uma empresa legal. 

Comecei a ler o descritivo. 

E o descritivo ia perfeito, encantando em cada frase, em cada argumento, em cada explicação. Objetivos bem definidos, requisitos claros, aquele tipo de texto que dá até alegria de olhar, até que… 

“Aceitamos candidatura de pessoas com deficiência.” 

Ué, mas por que não aceitariam?

Uma vaga de estágio, em redes sociais, trabalho remoto, dentro de casa, com um computador - e que, por experiência própria, significa passar 80% do seu tempo sozinho, logado na internet -, que impedimento teria para uma pessoa com deficiência?

Para os com deficiência física, o trabalho não requer nenhuma locomoção. Para os cegos, computadores são bem adaptados. Para os surdos, mudos, comunicação por texto, no google meets, no whatsapp, no slack, nos e-mails, nas legendas de redes sociais, nas dms. E para os com deficiência intelectual talvez um pouco mais de tempo de adaptação. 

Parabéns por fazerem o mínimo, e aceitar candidaturas de pessoas tão capazes quanto quaisquer outras. 

Crescendo com uma pessoa ‘com deficiência’ eu aprendi que inclusão não está em criar oportunidades separadas e especiais para pessoas com condições diferentes às chamadas ‘normais’. Inclusão é criar um ambiente onde todos sejam aceitos, respeitados - contratados - de forma igual, respeitando suas diferenças, dificuldades, tempos e processos. 

Espero que, quando contratarem meu irmão, contratem ele pela vaga que ele tem que ser contratado: professor. Não ‘professor com deficiência’. Não ‘professor especial’.

A vaga podia ser atraente, mas o entendimento sobre inclusão da empresa não era. E eu, uma pessoa ‘normal’, posso dizer que não me senti atraída pela vaga depois disso. - e, não, também não mandei para a minha amiga, que precisa de um estágio na àrea de direito. 


*Letícia Ribeiro é estudante de produção editorial e estagiária em mídias socias na Mercado Bitcoin


Descrição de imagem: ilustração de uma mesa com crianças de diversas características.